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Passamos nossos olhos sem-vergonha pelo mundo. De dois dedos de prosa e com os palmos estendidos até onde a vista alcançava. Depois corremos com os embornais encardidos na multidão de cana-de-açúcar. Parecia que o pó vermelho, daquelas terras no Paraná e em São Paulo, dominaria o universo. O vento turvo amansava os olhos cansados das batidas desmedidas do trabalhador contra a planta que ao cair sentia o choro de muitas crianças que, depois, presenciariam alguns dos seus sorverem na vontade do doce ou na cachaça. Aquele sol empoeirado não permitia a respiração sem espirros. Andava, um tempo depois, de casa em casa com a máquina na mão, aquelas máquinas de cortar gramas e costurar vidas, pedindo para devorar os matos, implorando para retirar as tiriricas, vinham donas tão cheias de certezas. Cortava o mato com as pontas do suor. E o mundo me ia... Não pareciam pequeno os quintais, eles me contavam histórias e as coisas faladas pulavam no meio dos gramados e dançavam como se mostrassem o mundo. As pessoas nas casas soluçavam ao entardecer, emudeciam quando era para me remunerar, pareciam tão pálidas nos seus palácios, tão pouco confortáveis em pagar para alguém que poderia ser escravo. Venho da junção do branco, do negro e do índio, uns são mais negros outros mais brancos outros mais índios e somos todos da mesma família, me parece tão poucas cores para falar da família, para colocá-la no mundo. Da parte de meu pai: o tataravô conquistou a liberdade, mas trabalhou muito tempo como escravo, depois meu bisavô juntou mato nas lavouras mineiras e meu avô apertou canos no interior do Paraná. De minha mãe: os italianos e os portugueses, após a primeira guerra, foram explorados em São Paulo, explorados no meio do mato, com as lavouras cobrindo as almas. Todos dos meus saíram do mato, da roça, do campo e eles foram para a cidade encontrar caminhos que os conduziram sempre para o trabalho, mas trabalhos arrecadadores de mais-valia, de condições de vida ensaboadas pela pobreza. Meu pai na juventude abrigou comunistas chilenos. Sempre me contava as histórias daqueles que eram oprimidos, sempre apontou como somos oprimidos. Fui para a universidade, cursar Geografia. Conheci o José Roberto Nunes de Azevedo, o Zé, aí fizemos Geografias, criamos espacialidades. Anteriormente, na faculdade de direito – que não concluí – o Elias Coimbra da Silva apareceu, veio falando de Dante, de Nietzsche e de Homero, leu alguns poemas belgas de Paul Van Ostaijen e criticou um pouco Paul Nougé. Zé apaixonado por Machado de Assis, ria comigo na faculdade, antes ele esperava na beira da estrada o ônibus de Iepê para Presidente Prudente. Zé Roberto costura o mato para que a vida ficasse certa, arrancava toco, trabalhava por dia, aprendeu com o pai e a mãe as durezas, as asperezas, as certezas e as lutas. Zé leu numa sentada só o Manifesto Comunista e descobriu que os desconfortos faziam parte do processo e o sol, se não estivesse nublado, surgiria pelas manhãs. Elias contava hora de máquinas, via os homens-robôs sendo conduzidos pelas máquinas, olhava o movimento dos “bichos” movidos a diesel. Frequentou os bares, os saraus, as noites e sempre encontrou o tédio e o terror, mas tragou as feridas e escreveu como fazem os poetas e venceu aquilo aparentemente inexpugnável. Elias encontrou o terror numa noite quente no Mato Grosso do Sul: uma menina ofereceu-se por comida. Ele aterrorizou-se com a humanidade e com o deus que não crê. Ajudou a menina e ficou pensando se outros não topariam a troca? Isso causou-lhe asco. Zé Roberto trabalhava por enxadas, picotava o mato, arrancava o fato, construía árvores e bebia a água do céu. Esses amigos, com suas vidas, fundaram a Cosmos. Fundamos uma revista num tempo de áureas dificuldades, de prestimosas cautelas e sufocantes ternuras. Tentaram destruir-nos. Apertaram nossos pescoços como se isso bastasse. Debruçamo-nos sobre a vida e tudo pareceu tão cálido, aí enumeramos as dores e corrompemos o medo, destronamos as vestes e mostramos que o rei estava nu. A Cosmos surgiu num dia de sol. Por causa das coisas, dos fatos, das cores, da vida, ela ficou dormindo. Despertamos a nós e a Cosmos. Passava pelo corredor do Instituto de Geografia um professor com sotaque que se apaixonou desde a infância em Portugal pela Geografia, amante nato de poesia, cultivador da arte e da cultura, promovedor da crítica necessária para a Geografia, apresentou-se António de Sousa Pedrosa. Estamos prontos e voltamos para passarmos nossos olhos sem-vergonha pelo mundo. Sem-vergonha em cobrarmos aquilo que não se menciona e nada dizem por cautela – para não ofender os opressores. Somos sem-cautelas e sem-vergonhas por dizermos aquilo que precisa ser dito.

 

Tulio Barbosa,

Fundador da Revista Cosmos com José Roberto Nunes de Azevedo

EDITORIAL COSMOS...

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